
Bruna Frascolla
O mainstream do protestantismo se converteu em sionismo - e acabou até mesmo ressuscitando as cruzadas com esse fito.
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Tucker Carlson recentemente expôs para o grande público algo já sabido pelos críticos do neoconservadorismo: que as ingerências ocidentais no Oriente Médio têm contribuído para varrer do mapa as mais antigas comunidades cristãs. Se Samuel Huntington substituiu o posto de Fukuyama como filósofo oficial e desenhou um mapa no qual o mundo de língua árabe é muçulmano, então os Estados Unidos bombardearam o Oriente Médio e patrocinaram radicais islâmicos que fizeram e fazem o máximo para expulsar ou matar as comunidades cristãs. Na Terra Santa, o trabalho da limpeza fica por conta de Israel, que não diferencia muçulmanos de cristãos.
O protestantismo copia o ethos vitimista do judaísmo. Ambos os credos gostam de representar Roma como tirana. Mas se o judaísmo tem o Holocausto fresco para se vitimizar, o protestantismo precisa procurar o noticiário global para encontrar noutros cantos do mundo cristãos em martírio. Pois bem: Tucker apresentou-os em Israel, ouvindo o pastor de Belém e a Madre Agapia, freira ortodoxa na Cisjordânia. Tendo-os em vista, o conceito "judaico-cristão" soa como uma ficção contraditória.
Não muito tempo depois, apareceu na internet a indignação contra a perseguição a cristãos na Nigéria. Uma das celebridades a dar esse destaque foi o comediante judeu Bill Maher, um típico sionista de esquerda. Numa evidente imitação daqueles que denunciam o genocídio na Palestina, Maher dizia à sua audiência que as imagens do genocídio de cristãos na Nigéria estavam acessíveis por toda a internet, e que há algo de errado com você se não se preocupa com elas. Ato contínuo, praticava o único esporte conhecido por boa parte da direita ocidental: denunciar a hipocrisia da esquerda. O público então é levado a crer que a esquerda não estaria interessada pelos palestinos, mas quereria, tão somente, proteger os inimigos da civilização judaico-cristão ocidental: os muçulmanos.
Isso ocorreu entre o final de setembro e o início de outubro. Em meados de outubro, a Associated Press noticiava que o senador Ted Cruz (Tel-Aviv Ted) "tem tentado mobilizar outros cristãos evangélicos e instar o Congresso a designar a Nigéria como violadora da liberdade religiosa, com alegações infundadas de 'assassinato em massa de cristãos', que o governo da nação da África Ocidental rejeitou veementemente como falsas." A coisa chegou a uma maluquice tamanha que um membro polonês do Parlamento Europeu prometia o resgate dos cristãos nigerianos em pouco tempo. No dia 5 de novembro, Trump finalmente adotou o discurso de Ted Cruz e prometeu tomar medidas contra a Nigéria caso ela siga consentindo com o assassinato de cristãos.
O fato de essa história da perseguição aos cristãos nigerianos ter ganhado tanta tração nas mídias sociais e até na política institucional é muito preocupante, porque demonstra que uma problemática mistura de politização com ignorância afeta indistintamente o comediante, o tuiteiro, os parlamentares ocidentais e o presidente da República do país mais poderoso do mundo. Vejamos bem: os cristãos nigerianos serem massacrados por muçulmanos nigerianos é simplesmente impossível sem uma grande guerra civil.
A Nigéria é o país mais populoso da África e o sexto país mais populoso do mundo, com cerca de 236 milhões habitantes. Como outros países africanos, a Nigéria ainda tem divisões étnicas nítidas, as quais não raro se cruzam com divisões religiosas (por exemplo, a tribo hauçá é muçulmana, a tribo igbo é cristã). Para facilitar a nossa vida, porém, a Nigéria tem um contraste importante entre Norte muçulmano e o Sul cristão, sendo este último rico e desenvolvido em comparação ao primeiro. Segundo a estimativa da CIA de 2018, os nigerianos se dividem em 53,5% muçulmanos, 10,6% católicos romanos, 35,3% outros cristãos, 0,6% outras religiões (onde na certa se incluem os paganismos). Assim, segundo a CIA, os muçulmanos só eram maioria em 2018 por um triz. Neste mês, graças à politização do assunto, o Pew Research Center publicou uma estimativa que divide o país em 56,1% de muçulmanos, 43,4% de cristãos e 0,6% de outras religiões. Não há dados oficiais. Segundo o Pew Research, a demografia religiosa é polêmica na Nigéria e o governo evita incluí-la no censo.
Se os cristãos forem só 40% da Nigéria, isso dá mais de 94 milhões de cristãos - os quais estão concentrados na parte mais rica e desenvolvida do país. Alguém avise ao polonês trumpista que ele quer colocar mais uns 100 milhões de imigrantes na Europa.
As imagens de cristãos perseguidos na Nigéria existem por causa do Boko Haram, que, tal como o ISIS, persegue qualquer pessoa que não siga a sua vertente particular do islamismo. Tal como o ISIS, o Boko Haram é um flagelo para qualquer área de maioria muçulmana. Assim, o problema da Nigéria com o Boko Haram é assemelhado ao problema do Brasil com as facções: o Estado não consegue ou não quer debelar uma organização paramilitar que oprime os seus cidadãos. No Brasil, um país de esmagadora maioria cristã, até há uma facção protestante que persegue católicos e adeptos de religiões de matriz africana (o Terceiro Comando Puro); logo, Trump poderia, se quisesse, alegar que o Brasil consente com perseguição religiosa em geral ou até cristã em particular (por causa dos católicos, omitindo-se a religião dos algozes). Trump só não faria isso porque aqui não há um vilão muçulmano para condenar, e é isto que interessa ao lobby sionista.
O mainstream do protestantismo se converteu em sionismo - e acabou até mesmo ressuscitando as cruzadas com esse fito. Se nos tempos de Lutero os protestantes faziam LARP de cristão perseguido da Antiguidade para negar a cristandade medieval, nos dias de hoje a Antiguidade sumiu do horizonte e protestantes como Pete Hegeseth fazem LARP de cruzado. São muitas as ironias da História.