15/07/2025 strategic-culture.su  6min 🇸🇹 #284265

Como o neoliberalismo devastou a Rússia

Eduardo Vasco

Toda a campanha que vemos atualmente ─ inclusive de guerra ─ contra os russos deve ser entendida estudando a história recente do país, nas últimas três décadas.

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─ Na minha opinião, a economia da União Soviética precisava de mudanças profundas naquele momento, mas não precisava ser destruída. E foi isso que fizeram: destruíram totalmente a economia, quebraram tudo ─ aponta Varvara Kuznetsova, de costas para uma estante de livros em língua russa ou espanhola a respeito da América Latina, no escritório em que trabalha. O prédio parece ter sido construído ainda no final do período czarista e está localizado na rua Bolshaya Ordynka, na região central de Moscou.

Varvara é cientista política e pesquisadora do Instituto Latino-Americano da Academia de Ciências da Rússia. Foi fundado na década de 1960. Na época da URSS, a revista institucional tinha seu próprio correspondente no México e havia cerca de 80 funcionários apenas no departamento de economia da entidade. Atualmente, há cerca de 60 funcionários em todo o Instituto. Em junho de 2022, quando estive em Moscou, discutimos a transformação da sociedade russa, de uma economia planejada, para a selva capitalista, na década de 1990.

─ Muitas pessoas não estavam preparadas mentalmente para viver nessa permanente competição capitalista ─ continua, em português fluente. ─ Porque de repente descobriu-se que só valem as pessoas que têm capacidade para negócios. E os cientistas, os professores, os médicos, cujo objetivo era trabalhar para o bem do povo, para o desenvolvimento do país, de repente ficaram todos fora. O que não tinha nada a ver com os negócios ia para o lixo.

─ Os problemas sociais aumentaram muito?

─ Evidentemente. Criou-se um abismo na desigualdade social. Os habitantes da União Soviética só conheciam isso pelos livros de história, sabiam que isso existia na Rússia imperial, mas jamais imaginavam que fosse possível ocorrer em suas próprias vidas. Era inimaginável a desigualdade social que se iniciou nos anos 1990. E além disso, muitas pessoas simplesmente perderam seu dinheiro, sua poupança. Os aposentados, por exemplo, ficaram sem nada.

─ Pobreza, consumo de drogas, desemprego aumentaram?

─ O consumo de drogas nos anos 90 era um problema muito grave. Hoje, diminuiu bastante. Se você for a qualquer cemitério, verá muitos túmulos com a data de nascimento do final dos anos 70 ou início dos anos 80 e a data da morte em meados dos anos 90. As causas eram duas, geralmente: a criminalidade (que floresceu naquele momento) ou o consumo de drogas (esse consumo era enorme nas escolas e faculdades). Nos anos 90, isso era proibido, mas na prática as proibições não existiam: imperava o capitalismo selvagem e a anarquia total.

─ Capitalismo selvagem? ─ interpelo Varvara.

─ Sim. O período de Iéltsin era uma vergonha nacional. Na realidade, o que nós, russos, pensamos? Muita gente pensa que duas pessoas na história da Rússia moderna merecem ir para o inferno, inferno permanente: Gorbatchov e Iéltsin. Uma vez uma senhora brasileira me perguntou: "por que na Rússia não há monumentos para Gorbatchov, se ele lhes deu liberdade?". Quando nos fazem perguntas assim, a gente ri. Que tipo de liberdade? Liberdade de hipoteca com juros altíssimos? Liberdade de ganhar uma miséria? Liberdade de quê? Liberdade de expressão? Tudo bem, a gente pode falar qualquer coisa. Mas quem escuta? Então, podemos dizer que venderam um grande e forte país pelos jeans e Coca-Cola. As pessoas que queriam o capitalismo experimentaram uma grande desilusão. Provavelmente por isso o que Putin propôs [reestatização de algumas empresas-chave, como a Rosneft, Yukos (incorporada à Rosneft), Gazprom e Aeroflot, bem como a criação da RZD para controlar o sistema de transporte], que não era nada ideal, mas era algo diferente daquilo que vivemos nos anos 90, teve sucesso. Eu, pessoalmente, acho que um enorme erro dos últimos governos da União Soviética nos anos 80 foi que não abriram logo a Cortina de Ferro. Antes de fazer qualquer mudança econômica, tinham de abrir a Cortina de Ferro. Porque evidentemente as pessoas iriam embora do país. Mas tenho certeza que um, dois, três anos vivendo sob o capitalismo, perderiam todas as ilusões e as pessoas começariam a valorizar mais o que tinham. O problema é que não sabiam como era fora da Cortina de Ferro. Achavam que lá todos bebiam Coca-Cola, usavam jeans de grife, dançavam e eram felizes. Na época de Iéltsin, o país foi saqueado. Acabou-se com a indústria, com a ciência, privatizou-se as empresas que depois foram aniquiladas, todo esse dinheiro foi levado para os bancos da Suíça. Entregou-se de graça a propriedade estatal a um grupo de oligarcas.

─ E o que são esses oligarcas?

─ O mais interessante é que eles eram todos da elite do Partido Comunista e do Komsomol [a organização da juventude do partido]. Na realidade, quem destruiu a União Soviética? O impulso foi dado pelo próprio Partido Comunista. Foi uma degradação total. Aquelas pessoas tinham muitos privilégios. Tinham acesso aos bens. Mas não podiam converter os seus privilégios em dinheiro e propriedade. Quiseram fazê-lo. E destruíram o nosso país.

Após a entrevista, Varvara nos conta as suas impressões sobre a política brasileira, tema sobre o qual vem pesquisando nos últimos anos.

─ A esquerda brasileira é muito americanizada. Para ela, os direitos dos homossexuais e das mulheres são mais importantes que os direitos dos trabalhadores. Até parece que no Brasil não existe mais o desemprego e outros problemas sociais. Parece que o mundo todo vive feliz e só os homossexuais estão sofrendo. Eu acho que se não fosse esse foco nos homossexuais, não teria havido essa reação conservadora e talvez Bolsonaro não tivesse vencido em 2018.

A década de 1990 foi um verdadeiro inferno. De um ano para outro, o consumo caiu 40%, entre 1991 e 1992. Um terço da população (34%) foi jogada abaixo da linha da pobreza. Quando Putin foi reeleito em 2004, após 5 anos do primeiro mandato, 20% dos russos ainda estavam nessa situação (30 milhões de pessoas). Mais de 225 mil empresas foram privatizadas. "Em 1998, mais de 80% das fazendas russas estavam falidas e cerca de setenta mil fábricas estatais tinham fechado, criando uma epidemia de desemprego", escreveu Naomi Klein em seu livro A doutrina do choque. Em 20 anos, enquanto a população empobreceu e diminuiu em 10%, o número de bilionários (os oligarcas) passou de zero para mais de 100.

Em meio a uma crise sem precedentes, motivada pela catástrofe econômica e social, Iéltsin teve de renunciar, em 1999, e em seu lugar assumiu Vladimir Putin, ex-agente da KGB. A Rússia vivia uma instabilidade política enorme e, apesar dos duríssimos ataques às suas condições de vida, os trabalhadores realizavam mobilizações multitudinárias pelo restabelecimento do estado operário e de seus direitos. Putin foi escolhido para tentar estabilizar a situação e isso só poderia ser feito contendo os trabalhadores e também a orgia neoliberal. Reestatizou empresas-chave dos setores de gás, petróleo e aviação, como a Rosneft, a Yukos (incorporada àquela), a Gazprom e a Aeroflot e criou a RZD para controlar o sistema de transporte. Sua política, desde então, começou a se chocar com os interesses dos grandes monopólios capitalistas internacionais, que haviam ordenado a espoliação da Rússia.

Toda a campanha que vemos atualmente ─ inclusive de guerra ─ contra os russos deve ser entendida estudando a história recente do país, nas últimas três décadas. Os grandes capitalistas estrangeiros, que controlaram a economia e a política da Rússia durante um curto período de tempo na década de 1990, querem voltar a saquear o país, assim como fizeram no Iraque e na Líbia. Os russos, no entanto, não são tão frágeis. E mostraram-se preparados para resistir, o que obriga o imperialismo europeu e americano a apelar para uma guerra aberta e direta, como estamos vendo neste exato momento.

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