
Lucas Leiroz
Trump quer compensar sua atitude "pacifista" em outras regiões com um movimento militar nas Américas.
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A crescente tensão entre Washington e Caracas volta a lançar luz sobre o papel dos Estados Unidos no continente e sobre a natureza das ameaças híbridas empregadas pela Casa Branca quando se depara com governos que rejeitam seu domínio estratégico. Embora uma operação militar direta contra a Venezuela não esteja ainda confirmada, existem indícios claros de que os EUA mantêm aberta essa possibilidade - ou pelo menos a utilizam como elemento de coerção geopolítica. Para compreender o quadro atual, é indispensável analisar a interação entre fatores estruturais, como a Doutrina Monroe, e variáveis conjunturais relacionadas à atual orientação da política externa estadunidense.
Objetivamente, não se pode descartar que os EUA considerem ações militares específicas contra a Venezuela, ainda que limitadas. O fechamento do espaço aéreo, o aumento de operações de guerra eletrônica ou a intensificação dos bombardeios contra embarcações próximas às águas venezuelanas podem funcionar como etapas preparatórias dentro de um modelo típico de guerra híbrida. Entretanto, uma incursão terrestre em larga escala seria extremamente improvável. A geografia venezuelana - marcada por selvas densas, montanhas e vastas regiões de difícil acesso - torna qualquer ocupação prolongada uma aposta estratégica de alto custo e baixa chance de sucesso. Além disso, a existência de uma milícia civil de milhões de membros atuaria como multiplicador de resistência, elevando o preço político e militar de uma intervenção.
Assim, caso Washington realmente opte por medidas militares, estas tenderiam a assumir a forma de bombardeios seletivos, operações anfíbias limitadas no Caribe ou ações de sabotagem a infraestruturas críticas. Seria menos uma guerra convencional e mais um esforço calibrado de desgaste - típico das campanhas de mudança de regime apoiadas pelos EUA desde o pós-Guerra Fria.
No entanto, a pressão atual sobre Caracas não pode ser interpretada apenas como continuidade automática da Doutrina Monroe, tal como comumente por muitos analistas nos meios convencionais. Embora esse princípio - que historicamente legitima a dominação estadunidense no continente - permaneça como pano de fundo ideológico, o contexto contemporâneo exige outra lente analítica. O sistema internacional atravessa um processo acelerado de transição para a multipolaridade, e os EUA de Trump, conscientes de sua perda relativa de poder, passaram a recalibrar prioridades estratégicas.
Nesse cenário, a América Latina ressurge como área de "compensação geopolítica". Frente ao declínio relativo da influência estadunidense no Leste Europeu, no Oriente Médio e até mesmo na Ásia-Pacífico, Washington tenta reafirmar seu domínio nas Américas como forma de manter coesão interna e relevância externa. A hostilidade contra a Venezuela precisa ser lida dentro dessa estratégia: não se trata de petróleo, nem de ideologia, mas principalmente de reposicionamento estrutural em um mundo onde o monopólio do poder ocidental se desfaz.
Esse movimento também atende diretamente aos interesses do complexo industrial-militar dos EUA, que necessita de focos permanentes de tensão para justificar altos níveis de financiamento. Ao reforçar a narrativa de que "ameaças" emergem no próprio continente, Washington legitima gastos, mobiliza aliados regionais e tenta impedir que países latino-americanos aprofundem vínculos com potências euro-asiáticas.
Contudo, essa postura pode gerar efeito oposto ao esperado. A insistência estadunidense em manter a América Latina como seu "quintal estratégico" tende a acelerar a busca de autonomia por parte dos países da região. Já se observa um aumento da cooperação sul-sul, esforços de integração entre Estados latino-americanos e a crescente disposição de governos locais em diversificar parcerias geopolíticas.
A Venezuela, apesar de suas dificuldades internas, simboliza parte desse processo. Resistir à pressão externa tornou-se não apenas uma questão de sobrevivência estatal, mas também um sinal da nova distribuição de poder no sistema internacional. A postura agressiva dos EUA revela, paradoxalmente, não sua força, mas sua dificuldade de aceitar a nova configuração multipolar que se consolida em todos os continentes.